Muitas pessoas afastaram-se da Igreja e a Igreja afastou-se dos seres humanos. Ficou muito prejudicada com essa atitude
Público, 19.10.2008, Frei Bento Domingues
O ano só tem 365 dias. Ao consultar os calendários mundiais, internacionais, nacionais e regionais - cívicos, políticos, religiosos -, fica-se com a impressão de que há menos dias do que propostas de celebração de tudo e mais alguma coisa. O passado dia 16 foi o Dia Mundial da Alimentação. No dia 17, consagrado à erradicação da pobreza, realizou-se também o I Encontro Nacional de Actores Sociais. Logo a seguir, dia 18, tivemos o Dia Europeu contra o Tráfico de Seres Humanos e a Igreja Católica celebra, hoje, o Dia Mundial das Missões. Este domingo tem uma história.
Em 1922, Pio XI foi eleito Papa e marcou logo o dia de Pentecostes com um gesto insólito: interrompeu a homilia e, no meio de um impressionante silêncio, tirou o solidéu e fê-lo passar entre a multidão de bispos, padres e fiéis presentes na Basílica de S. Pedro, pedindo a todos ajuda para as missões. No Ano Santo de 1925, abriu, no Vaticano, uma exposição missionária mundial e publicou a encíclica Rerum Ecclesiae sobre as missões, mas o grande acontecimento foi a inesperada consagração dos seis primeiros bispos chineses. No ano seguinte, instituiu o Dia Mundial das Missões, a celebrar, em toda a Igreja, no penúltimo domingo de Outubro.
O Papa Bento XVI, na mensagem para este domingo, recorreu à notável exortação apostólica de Paulo VI, Evangelii Nuntiandi (1975), sobre a evangelização do mundo contemporâneo, sublinhando que "evangelizar constitui, de facto, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade".
Ninguém estranhará que a contemporaneidade deste Papa já não seja a de Paulo VI, embora se mantenha exacta a caracterização da missão da Igreja. O que surpreende é a fugacidade da noção de "mundo contemporâneo". Bento XVI assinou a mensagem para este domingo no dia 11 de Maio passado. Ora, a turbulência global das últimas semanas, provocada pela especulação financeira, deixou sem cobertura o contraponto que ele procurou destacar na conjuntura actual: "Vejamos mais de perto a situação do mundo de hoje. Se, por um lado, o panorama internacional apresenta perspectivas de um desenvolvimento económico e social promissor, por outro, chama a nossa atenção para algumas graves preocupações no que diz respeito ao próprio porvir do homem. Em muitos casos, a violência caracteriza os relacionamentos entre os indivíduos e os povos; a pobreza oprime milhões de habitantes; as discriminações e às vezes até as perseguições por motivos raciais, culturais e religiosos impelem numerosas pessoas a fugir dos seus países para procurar refúgio e salvaguarda noutras paragens. Quando não tem como finalidade a dignidade e o bem do homem, quando não tem em vista um desenvolvimento solidário, o progresso tecnológico perde a sua potencialidade de factor de esperança e, pelo contrário, corre o risco de agravar os desequilíbrios e as injustiças já existentes."
No Vaticano II, a Igreja Católica procurou os gestos, as palavras e as decisões que traduzissem o Evangelho de Jesus Cristo para o mundo contemporâneo. Alguns acusaram a sua visão de optimismo excessivo. Não me parece. É mais exacto dizer que foi a persistência do pessimismo acerca da sexualidade humana, retomado no pós-concílio, que mais dificultou a evangelização de mulheres e homens do nosso tempo.
Estamos a 40 anos da Humanae Vitae (1968), chamada, muitas vezes, a "encíclica da pílula". Este documento produziu um desconforto eclesial inapagável. Importa conhecer a sua génese, estudar as consequências que produziu e as resistências eclesiásticas à sua alteração. Miguel Oliveira da Silva, professor de Ética Médica na Universidade de Lisboa, acaba de publicar uma obra pioneira em Portugal que merece a maior atenção e debate (1).
Para o cardeal Carlo M. Martini (2), a Igreja deve trabalhar no desenvolvimento de uma nova cultura da sexualidade e da relação, pois esta encíclica é, em parte, responsável por muitos já não tomarem a sério a Igreja como interlocutora ou como mestra. Aos jovens dos países ocidentais, já quase não lhes passa pela cabeça recorrer a representantes da Igreja para os consultar sobre questões de planificação familiar ou de sexualidade. Muitas pessoas afastaram-se da Igreja e a Igreja afastou-se dos seres humanos. Ficou muito prejudicada com essa atitude.
Este cardeal deseja uma nova encíclica, na qual o magistério diga algo de positivo sobre a sexualidade. Ele próprio faz sugestões e aponta um método de diálogo para que, nesse documento, não sejam dadas respostas a perguntas que não existem.
No Dia das Missões, é importante ter presente a advertência de Jesus: não adianta percorrer mar e terra só para fazer prosélitos. É preciso, antes de mais, fazer da Igreja um lugar habitável para mulheres e homens, jovens e adultos, sejam eles hetero ou homossexuais. Toda a realidade humana é ambígua. A sexualidade também é terra de evangelização.
(1) A Sexualidade a Igreja e a Bioética. 40 Anos de Humanae Vitae, Lisboa, Caminho, 2008. (2) Carlo M. Martini/Georg Sporschill, Coloquios nocturnos en Jerusalem, Madrid, San Pablo, 2008.
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