À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
DOMINGO IV DA QUARESMA Ano A – 2-Mar-2008
“O que sei é que eu era cego
e agora vejo.”
P. Vítor Gonçalves
DOMINGO IV DA QUARESMA Ano A – 2-Mar-2008

e agora vejo.”
Jo 9, 25
Um piscar de olhos
Quantas vezes aprendemos a valorizar o que tínhamos, precisamente quando acabámos de o perder! Não será esse o caso do cego de nascença a quem Jesus dá a vista, mas foi o de Jean-Dominique Bauby, director da revista francesa "Elle" que, aos 42 anos, foi vítima de um "locked-in-syndrome", uma doença rara que o deixou lúcido intelectualmente, mas paralisado por completo. Apenas conseguia comunicar com o piscar do olho esquerdo: um piscar para "dizer" sim, dois para "dizer" não. Assim escreveu o livro "O escafandro e a borboleta" que acabei de ver magnificamente adaptado ao cinema.
Daquela prisão, que compara a um escafandro onde os pensamentos são tão dificilmente partilhados, envia-nos pequenos postais esvoaçantes como borboletas, que nos falam do amor à vida e da descoberta das inúmeras pequenas coisas que enchem de luz a nossa vida. Não são felizes os momentos religiosos que o filme documenta, muito centrados no desejo imediato de uma cura, mergulhando pouco na espantosa vivencia de Jean-Dominique. É aí que vai acontecendo o milagre invisível e pouco perceptível a quem anda com demasiada pressa. Milagre esse bem filmado quando somos os olhos de Jean-Dominique e somos convidados a entrar nos seus próprios pensamentos. Não voltou a recuperar o movimento, mas com a imaginação e a memória percorreu distâncias imensas e deixou com o seu piscar do olho esquerdo uma interpelação forte à fragilidade e grandeza das nossas vidas.
Fiquei preso àquele piscar de olho. Sinal de cumplicidade mas também única forma de comunicação de uma alma que se descobre maior do que pensava. Como a borboleta que gasta todas as forças para romper a crisálida, tantas vezes somos chamados a essa transformação. Não é fácil passar da cegueira à visão; quantas responsabilidades acrescidas, quantas escolhas novas a fazer! Não é fácil passar de uma vida (e de uma fé) utilitária ao gosto de ajudar outros a ver (até Platão o contou na sublime alegoria da caverna!) A descoberta de Jesus que o cego vai fazendo encontra a oposição dos legalistas que não se maravilham com a sua transformação. Basta-lhes a linguagem do castigo, a lei que prende na culpa e no medo quem tem sede de um Deus que salva. Por isso permanecem na cegueira e, em terra de cegos, ai de quem diz ver! Não lhe terá também Jesus "piscado o olho"? E não nos fala Deus também por um piscar de olhos?